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sexta-feira, 30 de março de 2012

A arrogância cínica

Discutir política, tomando por base os textos e as defesas de Aristóteles quanto às noções de justiça e igualdade não é tarefa simples, principalmente porque os interlocutores sempre se interrogam  pela contradição que a Ética deste filósofo encontra com o seu contexto histórico. Explico.
Aritóteles nasceu no ano de 384 a.C, em Estagira, cidade que se localizava na Trácia, região conhecida na antiguidade por ser entreposto entre o ocidente e o oriente e mudou-se para Atenas em sua fase quase adulta, por volta dos 16 anos. Nesse período a mais destacada Pólis grega foi marcada pelas manifestações artísitcas, políticas e científicas, se assim podemos dizer. As decisões políticas costumavam ser engendradas em praça pública e aberta aos cidadãos, que assim, orgulhavam-se de sua Democracia, o governo de todos.
Porém, nesta mesma época,  as mulheres, os escravos e os estrangeiros não estavam incluídos no cenário político, pois representavam perigo para a elite da cidade. Vale lembrar que menos de um terço, provavelmente, tinha participação direta nas decisões. E Aristóteles, condizente com seu tempo, não defendeu o contrário disso. Tal é o ponto que os estudantes insistem em acusá-lo por covardia. Houve até uma aluna que acusou o pensador de “não possuir sequer senso de justiça”, mesmo ele tendo escrito um livro inteiro sobre a Ética.
É normal que se pense assim, afinal, dentro do nosso “etnocentrismo”, dessa capacidade tão limitada que temos de pensar a realidade com padrões diferentes do que estamos acostumados, toda e qualquer ação que estranhemos se torna criticada ou julgada por nossa moral. Especialmente em casos como esse, em tempos que a Democracia, embora pouco conhecida se tornou sinônimo de Bem Maior.
A propaganda e o cinismo das instituições de poder produzem um cenário em que todo “terror”deve ser combatido com os valores da “liberdade democrática”, o que fica evidente nos discursos dos chefes de estados, especialmente, dos EUA. Como cortina que encerra o espetáculo e leva o público a refletir, aparecem as defesas de liberdade comerciais e o repúdio a qualquer controle estatal econômico.
Esse mesmo público acaba por não se questionar sobre as diferenças e assimetrias que a Democracia esconde. Penso nos camarotes em casas de show, cercados por muretas e seguranças que vigiam a diferenciação. Penso nos tickets “fura-fila”dos parques de diversão, em que pessoas pagam a mais e passam na frente daqueles que ficaram horas debaixo do sol. Há ainda o sem-parar nos pedágios, que, de forma criminosa, confere passagens aos alienados que se subemteram acriticamente a pagar mais e se sentem aliviados por saber que passarão na frente dos outros.
Só que diferentemente da Grécia Antiga e sua democracia, hoje o cinismo é descarado e a ideologia propagada por ele é nefasta. Porque antes, o cidadão era levado a crer que os escravos e mulheres não podiam ter os mesmos direitos porque sua natureza era inferior, incapaz ou perigosa. Veja a sinceridade dos gregos e a violência de uma dominação ideológica que impedia a emancipação desses grupos oprimidos. Dessa forma, podemos ser levados inocentemente a concluir que, “com a natureza, não se pode brigar e seria ela quem teria produzido tais assimetrias”. Parece bizarro.
Agora, pensemos, no atual sistema econômico liberal que se entende bem com a querida Democracia, de quem seria a culpa das assimetrias? Já que a inferioridade não é mais algo natural, que descobrimos a solidariedade e a tão desejada diversidade cultural,  os direitos do Homem e do Cidadão, de Justiça e Igualdade; de quem seria a culpa? Ora, se não há nenhum impedimento jurídico para a conquista de tais privilégios, é sinal de que a questão resta econômica e que a escolha de obter ou não tais regalias (camarotes, ingressos vip, ser cliente primer) é de responsabilidade do próprio cidadão. Ou seja, alguns não se preocupam ou não se dispõe a conquistá-los, por isso não os possui. Esse é o fino cinismo do Liberalismo, que esconde as mazelas deixadas pelos governos democráticos e responsabiliza o indivíduo excluído.
O pior é que, os gregos não tinham uma reflexão crítica a respeito da História, reproduziam do modo mais bruto possível. Nós é que temos conhecimento das vergonhas passadas. E o mais cômico: as mesmas pessoas que se revoltam com Aristóreles e seus contemporâneos são as mesmas que reproduzem as assimetrias atuais em seu consumo. Porque olhar para o passado e julgá-lo é fácil; difícil é olhar para o futuro com cara de inocente e fingir que não sabia de nada.