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quarta-feira, 9 de maio de 2012

Entre velhos e discos

Velhos amigos se parecem muito com discos velhos, ou seria o inverso? Fato é que, todas as vezes que abrimos um armário, caixa ou outra parafernalha e retiramos de dentro tudo que guardamos sem motivo, vez em quando, é possível encontrar lá no fundo um vinil encostadão, até meio pálido pelo pó que deixamos cair por cima. Se essa for uma aparição de muito tempo atrás, dizemos "nossa, olha quem eu encontrei". E assim é, porque velhos amigos não achamos, apenas encontramos e nisso reside toda alegria (para nós) de revermos-los. Num momento seguinte os deixamos falar, digo, tocar, para vermos se ainda produz um bom som. Se a música ainda fizer sentido, o riso vem sem querer, com um prazer que faz qualquer um esquecer as coisas indesejáveis do cotidiano.
Mas, não só desses encontros somos feitos, porque também temos aqueles discos que já não são os mais usuais,  já que vinis não se tocam em automóveis (que são uns dos poucos locais possíveis de se ter tempo para curtir um laralá), mas também, temos aqueles discos que, meia volta volver, colocamos em tom médio ou alto, enquanto cozinhamos, estudamos, limpamos a casa ou bebemos curtindo a fossa. Nessas horas, há uma sintonia que só um companheiro fiel é capaz de produzir. Desses, normalmente, não temos saudades, mesmo porque alguma força cósmica desconhecida impede que o tempo empoeire ou que tenhamos tempo para nos esquecermos.
De qualquer forma, é notável a relação de semelhança entre os discos velhos e os velhos amigos, porque nos dois casos, sempre nos deparamos com o mesmo repertório. E o mais incrível é que não nos enjoamos. Mesmo acostumados a junkear a vida, procurando um substituto mais novo para tudo, os discos velhos mantém coisas que se revelam essenciais diante de sua presença ou memória. Isso acontece pelo fato de  só mantermos em importância o essencial das coisas e da dificuldade de jogá-lo fora; sequer desejaríamos tal absurdo. Às vezes me encontro com amigos que já sei metade da conversa antes de ela acontecer e rimos pela décima quarta vez das mesmas histórias que só tem graça para os envolvidos (é, aquelas histórias que os intrusos à mesa, fazem um risinho forçado, desdenhado e desentendido por não perceber onde estava "tanta" graça nelas). É o repertório repetido que nos atrai, ou antes, a essência que o produziu.
Lembro-me de mães que sempre comentam os desenhos animados que as crianças insistem em ver repetidamente, pela nonagésima sétima vez. Isso quando não se trata da mesma cena. "mãe, põe de novo aquela...". Quanta genialidade de alguns roteiristas, desenhistas ou escritores em conquistar por tantas vezes, com uma mesma coisa a atenção de uma criança. Ah, se nós professores descobríssemos tal fórmula... Bem, o professores podem não sabê-las, mas os amigos são especialistas nelas, chegando a tal ponto de, às vezes, não ter nada para comentar ou descobrir um do outro, nada de acréscimo (no sentido mais geral que esse termo pode ter) nada outro pode oferecer, nas palavras de Saint-Exupery, só a perda de tempo: "foi o tempo que perdeste com a tua rosa que a tornou única para você".  Foi o tempo que perdeste com seus discos velhos que o tornaram tão especiais para você.
Entretanto, penso como fica essa relação para uma geração que só conheceu o pen-drive e o I-fone, que se acostumou apagar tudo e colocar outro arquivo no lugar e quando passa os olhos pelo banco de dados, encontra apenas nomes, alguns entre milhares de outros que como aqueles, nunca serão raros. Nunca serão saudados, pois tão superficiais e simples foram as experiências que tiveram juntos. Talvez por isso as redes sociais façam tanto sucesso, uma imensa coleção de amigos superficiais, um vasto banco de dados que a cada dia cresce sem porque e se desejo. Nada de essencial eles têm. E os mais modernos dirão que isso é saudosismo de quem ama o passado e não vê que o novo sempre vem. Porém, defendo que melhor seria rememorar a essência que se perfilar gratuitamente em um presente de aparência.